É difícil que um fã de quadrinhos, filmes de super-heróis e cultura pop não conheça hoje o nome de Kevin Smith. O cineasta, além de liderar um popular podcast, está sempre virando notícia com seus reviews extremamente apaixonados de filmes como Vingadores e Star Wars. Mas o que nem todo mundo sabe, é que o Smith já foi muito importante para salvar a Marvel. E o Demolidor.
Sim, estou falando de Demolidor: Diabo da Guarda. Com roteiro de Smith e arte Joe Quesada, a HQ marca o início do selo Marvel Knights, cujo objetivo era trazer histórias dos heróis mais urbanos da editora, sob uma temática mais sombria e até mesmo mais adulta do que aquelas que vinham sendo publicadas pelo selo convencional. E muito mais do que isso, tirou o Demolidor e a Marvel de um período sombrio de péssimas histórias e péssimas vendas – época também conhecida como “o dia em que a Marvel quase faliu”. Na trama, que é recheada de temas religiosos, um bebê é deixado aos cuidados de Matt Murdock por sua jovem mãe, que alega estar sendo perseguida por pessoas que querem matar seu filho. O motivo, segundo ela? Ele foi concebido pelo espírito santo e é a reencarnação de Jesus Cristo. Porém, seus captores acreditam que seja exatamente o contrário: a criança é simplesmente o anti-cristo, destinado a destruir o mundo levando-o à ruína. Sim, é isso mesmo, um homem que se veste como um demônio tem sob seus cuidados uma criança que pode ser o Salvador ou o Anti-cristo.
Vivendo esse dilema, o Demolidor precisa decidir qual lado está certo: se deve manter a criança a salvo ou se ela realmente é o motivo de todos os seus problemas que vão acontecendo um após o outro durante o desenrolar da história. Com sua frágil sanidade cada vez mais abalada e em busca de respostas, o advogado cego se vê em uma queda vertiginosa e uma espiral de problemas que só perdem para a clássica Queda de Murdock de Frank Miller e David Mazzucchelli, a clássica HQ do herói escrita nos anos 80. Aliás, é notório que Kevin Smith bebe muita influência da época de Miller, utilizando vários dos seus conceitos, principalmente no que se refere à religião que era tema constante em suas histórias – ainda que seja um pouco mais implícito do que aqui, onde Smith escancara a criação católica de Matt. A religião é um tema tão constante na HQ que em várias páginas percebemos um detalhe de algum crucifixo.
Outra coisa que era tratada de forma sutil na mitologia do personagem e que Kevin Smith resolveu desenvolver é a questão da mãe de Matt, a madre Maggie. Sempre fugindo do assunto e nunca deixando claro se era ou não a mãe verdadeira de Matt que o abandonou com o pai, dessa vez ela encara seu filho e finalmente vemos claramente o seu rosto. Pode-se dizer que Diabo da Guarda é uma extensão de Queda de Murdock, ou ainda uma homenagem à famosa história do Homem sem Medo. Tudo que Miller deixou plantado anos atrás é utilizado aqui de forma competente por Smith, que apesar das influências, deixa a sua própria marca, contando uma história original e muito bem escrita do defensor da Cozinha do Inferno que só tem a acrescentar na mitologia do personagem. Aliás, lendo a HQ não tem como não notar o quanto a história serviu de base para o filme Demolidor – O Homem sem Medo de 2003, estrelado pelo ator Ben Affleck. Claro que o filme também utilizou muita coisa da obra de Frank Miller, e não podia ser diferente, mas é muito mais perceptível a influência de Diabo da Guarda. Seja na religião mostrada com frequência em ambas as histórias, ou até mesmo no visual e fotografia do filme, que utiliza de muitas referências da HQ. Uma cena interessante utilizada no filme e que também provém da HQ é a luta entre o Demolidor e o seu inimigo mortal, o psicótico Mercenário, dentro de uma igreja. Mais sangrenta e muito mais mortal que no filme, a luta é o melhor momento da história, conseguindo empolgar mais do que o próprio final da HQ, que é meio morno e não atende às expectativas em termos de vilão e de batalha. Além do mais, assim como no filme, na batalha com o Mercenário temos a morte de uma importante personagem feminina na vida do Homem sem Medo.
E como em toda boa história do Demolidor, a carga dramática é enorme, jogando o herói no fundo do poço. Parece que os roteiristas fazem uma espécie de aposta para ver quem vai ferrar mais o personagem em sua passagem pelo título. Mas também, nada mais normal do que isso, afinal… esquizofrênico, com uma sanidade frágil e com várias perdas em sua vida (para começar, o cara já é cego), acaba sendo interessante ver como o Demolidor reage perante as trágicas situações com sua mente conturbada. São sensacionais por exemplo os momentos na história em que o herói chega a pensar em matar o bebê para resolver os seus problemas, chegando a jogá-lo de um prédio duas vezes. Ou ainda a cena após a morte da personagem já citada anteriormente, em que Matt sozinho em seu quarto pensa em se suicidar.
A revelação no final da história sobre o vilão nada convencional que estava prejudicando a vida do herói, apesar de pouco empolgante, resolve todas as pontas soltas com competência, dando uma explicação plausível para tudo que havia sido mostrado até ali. Digo pouco empolgante pois eu particularmente esperava um final com mais ação, algo parecido com a luta com o Mercenário, mas reconheço que foi um final digno. Com uma conclusão satisfatória que agrada tanto religiosos quanto ateus (uma ótima jogada de Kevin Smith), a HQ figura como uma das melhores do personagem.
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